Freud colecionador: Um acervo psíquico

Mesa do escritório de Freud com alguns objetos de sua coleção: Foto: Freud Museum London

O Museu Freud é a casa onde Sigmund Freud, considerado o fundador da psicanálise, morou durante o último ano da sua vida com sua família, localizada em Londres, Inglaterra. Dedicado à vida e obra do psicanalista, o museu realiza diversas exposições que variam entre arte e exibições com o tema psicologia, além de oferecer cursos e encontros de pesquisa. Ao redor do mundo, já existem três museus dedicados a Freud, um deles em Pribor, República Tcheca, na residência onde ele nasceu; outro em Viena, na Áustria, na casa em que ele viveu a maior parte de sua vida; e, por fim, em Londres.

Quando Freud chegou em Londres, depois de escapar dos ataques nazistas na Alemanha, ficou hospedado por um tempo na Elsworthy Road e por fim se mudou para Maresfield Gardens, onde o museu está situado. Em escritos do psicanalista, ele relata que a recepção na capital inglesa foi acolhedora e cordial. A casa foi montada em uma recriação mais próxima possível da sua casa de Viena, com suas antiguidades e tapetes nos mesmos locais. O filho de Freud, Ernst, um arquiteto de sucesso que já morava e trabalhava em Londres, fez planos para melhorar a casa e o conforto do pai. A parede entre o escritório de seu pai e a biblioteca foi derrubada para criar um espaço de trabalho aberto, um elevador foi instalado e o jardim dos fundos foi reformado, para que a família se sentasse do lado de fora sob um teto.

Mesmo que ele tenha morrido um ano depois de se mudar para a casa, sua filha, Anna Freud, continuou na casa até 1982. Após a morte de Freud, Anna continuou a viver na casa com sua mãe, sua tia e uma amiga. A casa de Freud não sofreu muitas alterações, embora fosse usada pela família diariamente como um espaço comunitário. Suas antiguidades, livros e obras de arte permaneceram nas prateleiras, com Anna utilizando alguns itens do escritório do pai para colocar no seu. O desejo da filha de Freud era que a casa virasse um museu depois que morresse, de modo que deixou essas instruções em seu testamento. O museu foi aberto ao público em julho de 1986, completando 34 anos de atividade em 2020.

Estatueta de terracota de homem ajoelhado, do oeste do México, parte da coleção de Freud. Foto: Freud Museum London

Dentre as tipologias de museus, os museus-casas são considerados uma tipologia especial, pois são abrigados em um imóvel que foi a moradia de alguém, possuindo diferentes particularidades e tipos de acervo. Busca-se preservar a forma original, os objetos e o ambiente em que viveu aquela pessoa ou aquele grupo de pessoas, pois o conjunto museológico pode representar um recorte de determinada época, projetar a memória de um personagem social, evidenciar uma coleção de valor inestimável e retratar a vida doméstica de determinado grupo. A memória está evidente em um museu-casa, além de permitir analogias com a própria experiência, lembrando casas já moradas, ambientes conhecidos e sentidos.

O acervo exposto nessa tipologia de museu produz uma rede de significados e comunica suas histórias, mas o ser humano ou os grupos humanos que constituíram esse lugar de moradia estão de certo modo presentes, sendo capaz de articular o patrimônio material expresso tanto em sua edificação, nas formas de uma arquitetura, quanto um patrimônio imaterial, comunicando sobre formas de morar que remetem a um espaço e tempo específicos. Ainda, objetos, coleções e documentos presentes no interior da casa são suportes fundamentais na constituição da experiência museológica.

Assim, no interior da casa estão objetos e itens que podem ser expressões da imagem de si mesmo, são mensagens que se pretendem conduzir para o próprio eu. Desse modo, o acervo psíquico de uma casa possui uma história, trama de sentidos e um movimento do si mesmo para símbolos objetivos, pois tanto o simbólico quanto o concreto são fundamentais para a concepção do eu. Para a museóloga Tereza Scheiner, o museu no sentido psicanalítico é o museu que guarda todas as lembranças, vivências e os elementos inconscientes de cada indivíduo. O museu interior atua tanto no que se refere à psique pessoal quanto à coletiva, acontecendo também na relação indivíduo-sociedade. Para Freud, o espaço é constituído e imbuído do sujeito que reside dentro dele, ou seja, o acervo psíquico do sujeito é projetado no espaço de maneira consciente e inconsciente.

Escritório de Freud, localizado em Londres. Freud Museum London

Como parte do acervo do Museu Freud em Londres, há itens importantes que marcaram a vida e trabalho de Freud, como o divã e seu tapete. O psicanalista também foi um grande colecionador de obras de arte e antiguidades, com cerca de 2.500 itens, que ficavam amontoadas por toda a sua casa, criando um espaço semelhante a um museu muito antes do estabelecimento do Museu Freud. A coleção de antiguidades dele inclui objetos, esculturas e charutos da Grécia Antiga, Egito, Ásia Oriental, América Central e América do Sul. Os estudos de Freud contêm itens de várias culturas ao redor do mundo que entraram em sua posse entre 1896, quando ele começou a colecionar, e 1939, quando ele morreu em Londres. Não é possível saber quando e como Freud adquiriu todos esses objetos, visto que ele raramente registrava suas compras e alguns documentos foram perdidos, ainda que o museu tenha realizado um trabalho de pesquisa biográfica e proveniência.

Essas coleções desempenharam um papel fundamental na criação de suas teorias, uma vez que através desses objetos ele conheceu e estudou intensamente outras sociedades, além da prática de colecionar ter crescido vinculada com o desenvolvimento de suas teorias psicanalíticas. Seu interesse por antiguidades pode ser datado da época em que começou a escrever o primeiro grande livro da psicanálise “A interpretação dos sonhos”. Em relatos a seu amigo Wilhelm Fliess, ele descreve como as suas esculturas como seus “pequenos deuses sujos”, que agiram como “pesos de papel” para as páginas de sua obra. Porém, mais do que nessa dimensão prática, os objetos de Freud mantiveram uma função criativa e transformadora, sendo “ferramentas do pensamento, os utensílios de cozinha de sua imaginação”.

Conforme o site oficial do museu relata, a chegada da coleção de Freud de Viena para Londres foi fundamental para deixar para trás a destruição nazista, sugerindo que só se sentiria “à vontade” de verdade quando sua coleção chegasse de Viena. Nota-se que, apesar do desconhecimento de como todos os itens foram adquiridos, o psicanalista colecionou ao longo de toda a sua escrita e criação da psicanálise. O pesquisador e professor Francisco Marshall afirma como a raiz semântica do colecionismo tem uma relação entre raciocinar e discursar, “onde o sentido de falar é derivado do de coletar: a razão se faz como discurso”. Não é à toa que Freud concebeu a psicanálise como a “cura pela fala”, em que a comunicação exerceu papel essencial de ressignificação, sendo o principal alicerce da psicanálise.

Para conhecer mais sobre a coleção do Freud, acesse o link: https://www.freud.org.uk/collections/

Read Previous

Ibram publica recomendações para reabertura pós-pandemia

Read Next

Dicas rápidas para preservar seu livro

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *