Setembro Azul – Acessibilidade não é virtude, inclusão não é caridade.

Neste mês a equipe Click Museus apresenta uma programação especial para o Setembro Azul, um período que tem como objetivo dar visibilidade a Comunidade Surda Brasileira, visando comemorar as conquistas obtidas pela comunidade surda ao longo dos anos, mas também em um importante processo de conscientização sobre a importância e necessidade da acessibilidade em suas diversas instâncias. Nesta edição convidamos Saulo Tomé, diretor da Produtora de Acessibilidade Mundo Grande, com sede em Salvador, para contar um pouco sobre seu trabalho e vivencias no âmbito da acessibilidade cultural.

“Neste mês de setembro, completam-se oito anos que meu principal trabalho é tornar filmes, exposições, livros, cursos e espetáculos acessíveis para as pessoas com deficiência sensorial (cegas e surdas). Ao longo desse tempo, muitas pessoas (sem deficiência) me parabenizaram por estar tornando o mundo um lugar melhor, perguntam se eu recebo dinheiro para fazer esse trabalho e onde podem fazê-lo de forma voluntária. O que digo a elas é que, infelizmente, meu ofício ainda é raro, mas não faz de mim uma pessoa melhor, nem mais virtuosa. 

Que fique claro, não estou aqui para reclamar das boas intenções dessas pessoas. Trago esse relato por ser ilustrativo do quanto é comum a associação entre acessibilidade e caridade.

No entanto, não imagino um arquiteto sendo cumprimentado por projetar um elevador em um prédio de dez andares. Também nunca vi distribuidoras de filmes de cinema serem elogiadas por disponibilizarem cópias dubladas ou legendadas de filmes estrangeiros. Talvez você não tenha pensado nisso, mas tanto o elevador quanto as legendas e a dublagem são recursos que tornam espaços e bens culturais mais acessíveis.

É importante perceber que a acessibilidade atende as pessoas com deficiência, mas também aquelas que não têm deficiência. Um audiolivro é muito usado por pessoas cegas e também por pessoas que enxergam; textos com fonte ampliada atendem pessoas com baixa visão e também quem tem miopia, vista cansada ou dislexia; textos diretos, objetivos e bem estruturados alcançam o público desatento e apressado, e também as pessoas com deficiência intelectual, estrangeiros e crianças.

Em geral, nós, pessoas sem deficiência, consideramos que a acessibilidade é uma espécie de concessão benevolente que é feita por caridade ou pela força da lei. Nada mais natural, afinal, a maioria de nós estudou em escolas normativas e trabalha em espaços sem nenhuma pessoa com deficiência.

Muitas vezes, quando há pessoas com deficiência nesses espaços, “elas que lutem” para superar as barreiras existentes na hostilidade da nossa organização social. Como retribuição, ganham o perverso elogio de “exemplo de superação”, que transfere para o indivíduo com deficiência a responsabilidade pela inclusão, que é de todos.

O que geralmente passa despercebido é o quanto esses espaços homogêneos e normativos são pobres em experiências. Nesse sentido, a inclusão não é uma concessão de bondade, mas a única maneira de tornar produtos, espaços e relações mais ricas e interessantes para todo mundo!

Não nos enganemos, a inclusão dá trabalho e não acontece da noite para o dia, mas é assim mesmo: aprender e mudar exige certa dedicação. Cada tipo de deficiência vai exigir uma resposta diferente, uma solução diferente, e isso já é parte da mudança. A boa notícia é que esse processo é delicioso e que as soluções já existem aos montes, basta disposição em aplicá-las.

Em espaços museológicos, a acessibilidade muitas vezes encontra resistência por parte da produção (que teve que incluir um custo) ou da cenotécnica (que não gostou de interferências no seu projeto expositivo). Todavia, depois de algumas experiências, as instituições, artistas e produtores culturais percebem que é a acessibilidade que abre caminho para a inclusão e diversificação do público. 

Mais ainda, os recursos de acessibilidade cultural (Libras, audiodescrição e legenda) permitem abrir uma nova camada de experiência nos museus e são frequentemente usados por pessoas com e sem deficiência.

Quando a acessibilidade é pensada logo na pré-produção de uma exposição, esse potencial se amplia e o conteúdo acessível vai além da “tradução”, desdobrando-se em experiências táteis, sonoras e visuais, dialogando profundamente com os espaços, artistas e com o educativo do museu.

A audiodescrição, por exemplo, pode servir também como ferramenta de mediação ao incluir informações extras, trilhas e entrevistas. Além disso, o público vidente (que enxerga) geralmente tem interesse em saber como é a transposição de uma obra visual para texto e áudio.

Conteúdos bilíngues com Libras e português simultâneos também costumam chamar a atenção de ouvintes, principalmente das crianças, ávidas por entender essa língua silenciosa tão interessante.

Seja por escolha ou pela força da lei, a Língua Brasileira de Sinais está cada vez mais presente no cotidiano dos brasileiros. Muita gente já sabe, mas vale reforçar que Libras não é mímica e não é “português traduzido”. As línguas de sinais são línguas completinhas, com sistema lexical e gramatical próprios.

Às pessoas sem deficiência que lêem esse texto, sugiro que aprendam o básico de Libras, de preferência com pessoas surdas. Se você acha Libras bacana, fofa ou interessante, se matricule num curso (presencial é mais legal, mas pode ser online) e se permita essa experiência. A Língua Brasileira de Sinais é uma língua viva, como o inglês e o espanhol, que muitos fazemos questão de arranhar quando estamos na presença de um estrangeiro visitante.

A maioria dos surdos têm a Libras como principal idioma, e no entanto, para navegar nesse mundo excludente, precisam ler lábios e vocalizar palavras que não podem ouvir. Muitas vezes, em seu próprio país, surdos têm uma experiência de comunicação mais difícil do que a dos estrangeiros. 

Entre outras pautas, nos meses de setembro, se promove o “setembro azul” ou “setembro surdo”. Este mês foi escolhido porque em setembro é comemorado o Dia da Língua de Sinais (23), o Dia Nacional do Surdo (26), o Dia Internacional do Intérprete e Tradutor (30) e ocorre a Semana Internacional dos Surdos (promovida pela Federação Internacional dos Surdos). 

Além das datas celebrativas, o “setembro surdo” também faz menção ao trágico e distante mês de setembro de 1880. Há quase 150 anos, uma conferência internacional de educadores de surdos ocorreu na cidade de Milão, na Itália, reunindo mais de 160 profissionais de 27 países. 

O principal objetivo do Congresso de Milão era deliberar sobre qual método de ensino seria adotado na educação institucional dos surdos: o oralismo (leitura labial e vocalização) ou as línguas de sinais.

Em uma votação na qual pessoas surdas não tiveram o direito de votar, o oralismo prevaleceu e assim, as línguas de sinais sofreram uma asfixia institucional a nível mundial durante cem anos. A comunidade surda lamenta profundamente que seu idioma tenha sido marginalizado durante um século, numa franca tentativa de extingui-lo.

As línguas formam o tecido da cultura e do pensamento. Certamente, as pessoas surdas foram as mais prejudicadas por essa decisão unilateral e totalitária, mas hoje sabemos que toda a humanidade perde quando uma língua morre.

Essa é apenas uma das situações em que todos saímos prejudicados com a tentativa de nivelar a humanidade pela régua do capacitismo. Não fosse o infame Congresso de Milão, hoje todos nós poderíamos ter o prazer de nos comunicarmos em Libras, ainda que em nível básico.

É preciso que fiquemos atentos, pois muitas políticas segregacionistas se revestem do verniz científico e institucional para normatizar e marginalizar comportamentos e populações.

A inclusão é uma jornada sem linha de chegada, onde pessoas e instituições devem avançar todos os dias, sem parar. A parte mais legal é que todo mundo ganha com isso! Por isso, não é concessão, nem caridade.”

Sobre o autor

Saulo Tomé tem formação em audiovisual e trabalha desde 2015 produzindo conteúdos acessíveis. Atualmente, é diretor da produtora de acessibilidade Mundo Grande, com sede em Salvador. Adora falar sobre projetos culturais e acessibilidade e tem plena convicção de que qualquer conteúdo fica ainda melhor se for acessível. Não hesite em entrar em contato através do e-mail saulo@mundogrande.tv

Mundo Grande é uma produtora de acessibilidade cultural que torna filmes, séries, livros, exposições, espetáculos e cursos disponíveis para pessoas com deficiência visual, auditiva e intelectual. Sediada em Salvador e atendendo a projetos de todo o Brasil, tem vocação em resolver desafios de acessibilidade, dos mais simples aos mais cabeludos, para que o seu conteúdo alcance o máximo de pessoas. Para saber mais, visite nosso site, traga seu projeto pra cá! www.mundogrande.tv

Saiba mais sobre o trabalho da Mundo Grande.

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One Comment

  • Muito interessante essa perspectiva. Eu que não sou surda, nunca tinha pensado sobre isso dessa maneira. A gente vive numa sociedade muito normativa mesmo!

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