As reflexões neste texto estão fundamentadas sob a égide do tripé patrimônio cultural, jornalismo e classe social dentro de uma dada configuração espacial: o Rio Grande do Norte. Desta maneira, sucintamente, procura refletir sobre a participação da mídia hegemônica no processo de consolidação do patrimônio cultural, em especial, o potiguar.
A proteção oficial do Estado sobre os bens, tangíveis ou não, considerados importantes na construção de identidades culturais diversas e da história de cada sociedade, é chamada, incluindo os próprios bens, de patrimônio cultural. Há muitas formas de um patrimônio cultural ser formado, todas têm seu componente político. Mesmo as paisagens naturais, insuspeitas à primeira vista (literalmente), que abrigam forte ideologia. Até elas estão carregadas de memória, como bem desenvolveu Simon Schama no já clássico livro Paisagem e memória, de 1996. O mesmo se aplica, ainda de forma mais clara, às estátuas, nomes de ruas, peças de museus, enfim, ao que é considerado patrimônio e/ou musealizado (musealização é o processo cultural, social e político que transforma objetos com seu uso primeiro e original em peças de museu).
Em nossa atual sociedade, a ideologia dominante é a de caráter burguês, a que favorece o que simboliza justamente a classe dominante. Enquanto isso, a imprensa hegemônica é em grande parte porta-voz dessa classe e, em outra medida, elemento constituinte dela. Então, sob o pretexto de ser um agente de mediação em uma dada sociedade, a imprensa produz e reproduz a ideologia dominante. Caso contrário, não teria a menor possibilidade de ser hegemônica. Assim, imbricados na lógica liberal, não poderia haver uma barreira invisível que fizesse tal imprensa ser alheia ao status quo social, mesmo que ela própria repetidamente arrogue para si mesma a posição de “imparcial” ou “isenta”. Da mesma maneira, não é possível separar a prática cultural da prática econômica, assim como não se pode separar a política da economia.
A ideologia espraia-se tanto na sociedade quanto nos indivíduos, na reprodução variada de suas ideias e práticas, sem se revelar, sendo isto característica própria da manifestação ideológica, como aponta Marilena Chauí, no pequeno e assertivo livro O que é ideologia, escrito nos anos 1980. Os patrimônios culturais estão ligados aos grupos que os produzem, que a eles dão sentidos simbólicos, justamente porque neles se enxergam e se identificam. Em outras palavras, há uma relação intensa entre patrimônio cultural e identidade cultural. Às vezes isso é reforçado pelo grupo a quem é de fora, às vezes isso surge como uma caracterização externa que se aproxima da estereotipação. No primeiro caso, temos vários exemplos de comunidades indígenas que se esforçam para que sua língua original e práticas ancestrais não se percam; no segundo podemos citar a relação estabelecida quase imediatamente (ou seja, sem mediação) entre o samba, a malandragem e o carioca.
Frequentemente a imprensa hegemônica noticia a destruição de edifícios históricos. Podemos observar dois destes casos no Rio Grande do Norte. Dois casarões do início do século XX: um de arquitetura neocolonial em Natal e outro em arquitetura Art Déco na cidade de Caicó. Podemos conferir, entre outras matérias veiculadas na imprensa regional, respectivamente, em uma no portal do Tribuna do Norte, de 28 de agosto de 2015, “A frágil memória da cidade”, e outra, de 19 de maio de 2021, em sneri.blog.br, intitulada “Casarão com 107 anos é demolido em Caicó e fomenta debate debate sobre patrimônio arquitetônico”
Tais casos revelam não o choque de dois grupos, mas de duas partes da mesma classe socialmente dominante: um grupo mais tradicionalista (do qual geralmente pertencem aquelas pessoas que além de recursos financeiros substanciosos também possuem um status socialmente há tempos consolidado em um dado contexto) e outro mais moderno de novos ricos (que igualmente são economicamente prósperos, mas que ainda não possuírem o mesmo status social historicamente consolidado) os quais pouco se importam com o patrimônio cultural. Os pesquisadores universitários, por sua vez, geralmente adotam a perspectiva do grupo mais tradicionalista.
Contudo, um patrimônio, seguindo esse entendimento, consequentemente não pode ser protegido via de regra por um grupo que nele não se enxerga. Isso pode ocorrer quando tais grupos são afetados pela educação e sociabilidade da classe dominante. Ou seja, quando as pessoas absorvem as ideias dominantes e, imersas nelas, simulam o pertencimento. Isso explica a atitude ilógica, mas comum, de pessoas que se endividam para comprar um celular ou um carro que custa um valor que está bem acima da correspondência de suas possibilidades financeiras. No caso do patrimônio cultural, esse simulacro vem, por exemplo, de estudantes universitários pobres que se empenham na defesa de estátuas e construções representantes de uma classe dominante parasitária que historicamente não fez nada de relevante além de explorar compulsoriamente o trabalho da classe economicamente subalterna a qual eles (estudantes universitários) geralmente pertencem. Assim, atualmente é bem comum que tais pessoas (todos membros da classe trabalhadora) compartilhem com indignação em suas redes sociais notícias publicadas pela imprensa hegemônica que tratam da destruição de prédios antigos. Bem como escrevam comentários indignados nos espaços previamente destinados às manifestações dos leitores de tais matérias jornalísticas. No caso das pessoas que fazem parte das parcelas sociais ainda mais precarizadas e empobrecidas, que sequer tiveram acesso à educação burguesa e ideias de refinamento social em seus moldes, o desprezo por esse patrimônio é completo. Elas não costumam ler jornais ou acessar portais noticiosos via internet e, quando muito, apenas residualmente tomam ciência pela TV da destruição de prédios ou monumentos antigos, dado o fato de que, por razões óbvias, estão muito mais centradas em sua luta pela própria existência física. Para tais pessoas, as notícias sobre a derrubada de um ou mais casarões para a edificação de prédios modernos que possam dar lugar a farmácias, lojas ou até mesmo estacionamentos significa a abertura de mais postos de trabalho. Se as fachadas poderiam ou não terem sido preservadas, pouco ou, mais provavelmente, nada importa.
Assim sendo, no caso dos dois casarões em ambas as cidades, a mobilização partiu de parte da comunidade acadêmica, pesquisadores independentes ainda adeptos da historiografia positivista, descendentes dos antigos proprietários e da imprensa local. Contudo, não se conhecem manifestações públicas de pessoas residentes nos bairros mais pobres de ambas as cidades. Provavelmente porque elas não se viam naquele patrimônio nem sequer absorveram, nesse ponto, a ideologia dessa fração mais tradicionalista da classe dominante. Aqui se fala em fração, pois foi justamente outra fração da mesma classe, menos apegada ao seu passado e status patrimonial, que pôs abaixo os casarões. Em outras palavras, sem a consideração do processo de lutas de classes, inclusive nas dimensões local e regional, não há possibilidade da compreensão profunda da questão patrimonial. Por mais que a imprensa hegemônica tente nos convencer do contrário.
Autoria do texto: Adriano Medeiros Costa e Tiago Tavares e Silva
Autoria da arte: José Lucas de Araújo