Sem dúvida uma exposição pode ter as funções de deleite estético e reforço de vozes marginalizadas e invisibilizadas socialmente. Certamente a maior contribuição da museologia contemporânea, desenvolvida principalmente a partir da segunda metade do século passado, foi a preocupação de o museu ser relevante para a comunidade que o cerca. Mais: de ser relevante com essa comunidade, nos moldes defendidos por Átila Tolentino.
Contudo, a preocupação com o protagonismo de uma parcela da população e a valorização de suas manifestações artísticas não podem servir de biombo para outras questões inerentes ao tema pensado, por mais incômodas que sejam suas implicações. A exposição de um museu universitário tem compromisso com a ciência, que se apresenta, para nós, em um duplo aspecto: o compromisso com uma história mais plural; a inclinação ao constante processo de apontar novas perspectivas a partir de uma visão crítica.
Trataremos dessas considerações gerais aplicadas ao caso das irmandades de negros do Brasil dos tempos coloniais, as quais, muitas, continuam até os dias de hoje. Essas organizações surgiram no contexto da escravidão, sendo um espaço de negociação, combinação e contraste diante do poder instituido. O Museu do Seridó está em um processo de pesquisa sobre as irmandades da região em que está inserido, indicada em seu próprio nome.
A bibliografia especializada no tema das irmandades de negros de origem colonial consultada nos traz importantes fontes e informações, mas que podem, associadas a outras referências bibliográficas mais gerais e a uma museologia criativa, nos levar a diferentes conclusões. Ao observar a história do Brasil, sustentamos que as Irmandades dos homens pretos não cumpriram exclusivamente o papel de resistência. Elas serviram de alívio da tensão da contradição essencial entre pessoas escravizadas e aqueles que se locupletaram com a exploração de seu trabalho, os famigerados “senhores de escravos”.
As irmandades contêm, em sua constituição, aspectos contraditórios, históricos e complexos: por um lado foi um meio de a Igreja Católica catequizar negros e mantê-los sob certo controle, por outro se constituiu em um importante espaço de sua organização e conquistas. Tais conquistas ocorriam tanto no campo individual, de algumas pessoas que compravam a alforria ou pagavam melhores velórios, quanto no coletivo, quando mostravam às respectivas sociedades das quais faziam parte que também tinham expressões religiosas, culturais e artísticas.
O antagonismo marcado pela cor da pele é hoje forjado pela classe social e ainda atrelado à cor. Além disso, os arranjos de contenção das tensões foram alterados. Além das irmandades, a população negra vê um homem negro chegar à presidência dos Estados Unidos e traços étnicos antes vilipendiados pelo mercado hoje estamparem propagandas de produtos de beleza. Isso de modo algum demonstra a eliminação do racismo, mas a maior visibilidade de seus conflitos e a apropriação do mercado de reivindicações sociais. Em outras palavras, a estrutura social continua com a exploração, preconceito e humilhação da população negra, mas agora há, por um lado, um maior realçamento da organização dos movimentos sociais e, por outro, mas a ele ligado, a mercadorização dessa luta.
Com relação às irmandades negras e suas expressões culturais e artísticas, seriam formas de excluídos socialmente ocuparem num mundo unicamente simbólico o que lhes é negado no mundo social e político? Quanto de temor havia nos beneficiários da estrutura escravista para que consentissem, mesmo que simbolicamente, reinados negros?
Indo às fontes (contabilidade das irmandades ou registros oficiais da Igreja, tão usados pela historiografia especializada no tema, como em textos da pesquisadora Martha Abreu), percebemos que as irmandades eram também financiadas por aqueles que exploravam a mão-de-obra negra. Com quais interesses um grupo financiaria a resistência daqueles que estão sob seu regime de exploração e opressão? A resposta nos parece cristalina: porque não se tratava de mera resistência, mas parte de complexo arranjo entre grupos antagônicos, como pretendemos demonstrar mais a frente. Não somente diferentes, antagônicos, vale ressaltar.
Autoria do texto: Tiago Tavares e Silva
Autoria da arte:Hyally Carvalho Dutra Pereira