A história oral se popularizou muito nos anos 1980, pouco depois da invenção do gravador portátil. Nesse tempo também muitos sociólogos, etnólogos e outros pesquisadores das ciências humanas se animavam com as possibilidades dos relatos de vida para suas respectivas áreas. O primeiro banho de água fria veio em 1986 com Pierre Bourdieu no texto curto e vigoroso A ilusão biográfica. É certo que o próprio Bourdieu, anos depois, reviu algumas coisas. Mas nem ele conseguiu deter o impacto daquelas poucas páginas no campo dos relatos de vida, para a sociologia. Este texto tenta relacionar as observações bourdieusianas de 1986 com a museologia.
Vamos, então, ao que foi dito trinta e cinco anos atrás. Toda apresentação de si é, na verdade, uma produção de si. Procuramos encaixar coisas espalhadas, dar a elas uma cronologia, um sentido que liga passado e presente em um continuum imaginado. Efeito admirado e até procurado por quem colhe o relato, vale lembrar. Assim, pilotos de avião (ou suas mães) buscam fotos de criança brincando com aeronaves, músicos com violões de brinquedo e assim por diante.
Temos um nome e isso nos marca para a vida. Ele cria uma espécie de identidade biológica que atravessa os diversos espaços sociais. O tempo biológico é colado, através desse artefato da biografia, ao tempo social, onde tudo flui em conjunto. Mas, nos lembra Bourdieu, e não somente no texto citado, que habitamos distintos campos sociais, cumprimos diversos papéis na vida: filho, pai, sobrinha, avô, amigo, chefe, garçonete, cliente, empregado, vizinho, motorista, grevista, pedestre e mais uma infinidade de possibilidades. Poderíamos ir adiante considerando, inclusive, que a própria posição corporal altera nosso ser ao longo do dia, como bem pesquisou Yi-Fu Tuan, esse grande e perspicaz geógrafo chinês, no livro Espaço e lugar: a perspectiva da experiência.
A partir dessas considerações podemos trazer os museus. Quantos museus de personalidades famosas não existem? Elvis Presley tem um museu (Graceland), John Kennedy (John F. Kennedy Presidential Museum & Library) e Juscelino Kubistchek (Memorial JK). Diferente do Museu Câmara Cascudo em Natal-RN ou Instituto Ricardo Brennand em Recife-PE, esses primeiros museus citados levam não apenas o nome, mas todo seu acervo se volta para a vida e obra das personalidades.
Aqui compartilho uma experiência no Museo del Che, dedicado ao guerrilheiro argentino/cubano Ernesto Guevara. O Museu fica a 700 Km de Buenos Aires, numa pequena cidade chamada Alta Gracia, interior da Argentina. Lá o pequeno Ernesto foi morar por recomendação médica para tratamento da asma. O lugar tem um tipo de pureza no ar que ajuda no tratamento de asmáticos. Na casa viveu uma criança e sua família, mas a atmosfera era de um guerrilheiro. O espaço criava, através da narrativa museal e o acervo, um ambiente que nos remetia mais a Havana que ao interior da Argentina, mais ao Che Guevara que ao pequeno Ernesto. E, talvez, nem fizesse sentido criar um museu numa casa onde morou Che Guevara que não remetesse aos seus feitos na famosa ilha do Caribe em 1959. A questão é a reflexão da ilusão biográfica ligando diferentes circunstâncias, tecendo narrativas que, assim como no cinema, nos proporcionam a suspensão da descrença. Vamos com uma imagem preconcebida e nela nos guiamos na exposição. Claro que sempre há a interessante possibilidade de o museu jogar com isso, favorecendo surpresas, quebras, descontinuidades.
Podemos, no entanto, ir além. E quando as biografias não são necessariamente de pessoas famosas, como ocorre no Museu da Pessoa no espaço virtual, Museu do Holocausto em Curitiba-PR ou Museu da Imigração em São Paulo-SP? As pessoas que “doam” suas memórias aos museus o fazem sabendo o que se espera delas a partir do perfil da instituição que coleta: uma lembrança emocionante de um período de exceção, uma história de superação em outro lugar diferente do que nasceu ou algo especial que ache que vale a pena ser contada. Enfim, ser roteirista de si mesmo! Sem conotação qualquer aqui de inverdade no processo, afinal, há peças e filmes baseados em histórias reais e nem por isso deixam de ter roteiros.
Por fim, refletimos como a ilusão biográfica poderia se relacionar com uma memória regional, isto é, atrelada a um território. É o caso do Museu do Seridó, em Caicó-RN. Nele é trabalhada a identidade cultural de um povo. As pessoas que vão colaborar com o Museu sabem dessa temática, que ele dialoga com essa identidade, seja para reforçá-la ou para fazer contraposições. É nessa tensão que a exposição é feita, não em um vazio. O público tende a reforçar ou negar essa identidade a partir de sua biografia ao ver uma exposição (aqui me refiro aos seridoenses).
Há muito o que se refletir sobre a ilusão biográfica pensada por Bourdieu e os museus. As exposições são recortes da realidade carregados de intenção de quem a faz, sempre na interação dialética do oculto-visto. Não se pode escolher tudo. Assim também não são nossas memórias biográficas?
Autoria: Tiago Tavares e Silva