Museus de universidade pública e as questões religiosas: um debate sobre estado laico
Como bem dizia Hugues de Varine, nos anos 1960, o objetivo do museu não é fazer pesquisa científica, mas servir à humanidade, coisa que ele só pode fazer através da pesquisa científica. No caso do museu universitário há uma dupla responsabilidade com a perspectiva científica, justamente por ser museu e por ser universidade pública. Comecemos pelos museus de forma geral.
A dimensão científica está presente em todas as áreas do museu: pesquisa, comunicação e conservação. Mas este compromisso vai além, pois, como lembra André Gob e Noémie Drouguet, os museus não servem às ideologias de nenhuma espécie, incluo aqui as religiosas. Este fundamento está na própria constituição de um museu, ou seja, sua perda compromete a classificação da instituição enquanto museu. A apologia religiosa pura e simples, portanto, é algo estranho ao mundo museal. O museu deve ser crítico, não apologético.
Ser crítico é entendido aqui, resumidamente, em dois pontos: o primeiro remete ao processo de estudar e entender o que se produziu sobre o tema, levando em conta as possíveis determinações, motivações e conteúdo; o segundo, ao primeiro relacionado e a partir dele, é negar (em sentido dialético) fatores que não se sustentam na nossa análise, sem, no entanto, abandoná-los para a compreensão do próprio objeto, visto que tais fatores não surgem do nada.
No caso de um museu de universidade pública esse dever é reforçado pelo caráter laico do Estado, como assegura o artigo 19 da Constituição Federal. Os museus das universidades públicas não são apenas geridos por essas universidades, mas são parte constituinte delas. Museu universitário é universidade. É Estado também. Por isso é imprescindível a laicidade de sua atuação e a vinculação indelével com a produção científica de seu fazer.
Isso não apaga o traço político do museu, quer ele seja admitido ou não, consciente ou não. Nada mais ideológico que a tentativa de cobrir as próprias conformidades e avizinhações com uma ideologia qualquer. Há muito já ficou comprovada a impossibilidade da neutralidade na atuação científica, não cabendo aqui prolongamento desse tema. O posicionamento político enfático é até necessário, às vezes. Um exemplo é a necessidade de reafirmação da existência do holocausto, em que os museus que trabalham com essa temática devem desenvolver e reafirmar diante do negacionismo científico. A ação é política e ideológica (em sentido amplo), mas também científica, não se tratando, portanto, de mera apologia. Isso seria se a instituição usasse do expediente do negacionismo como brecha para promover o sionismo.
O cuidado deve permanecer mesmo em se tratando de alinhamento a valores democráticos e humanistas. Isso significa que a perseguição às religiões de matriz africana não deve abrir espaço para que o Estado, ainda que em forma de museu, faça apologia a essas religiões. O tema é delicado e as fronteiras são tênues, mas precisa ser tratado. O museu pode dar voz, ou, melhor ainda, trabalhar em parceria com uma comunidade excluída por sua opção religiosa, mas não pode tratar uma expressão religiosa como verdade, fazer a reprodução do discurso religioso, seja ele qual for.
O Museu do Seridó, unidade suplementar da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, localizado na cidade de Caicó-RN, tem, até agora, anos recentes de sua reabertura, como única exposição Devoções do Seridó. É uma exposição que partiu da pesquisa das práticas religiosas na região, a serem incluídas, este ano inclusive, as não oficiais. Guardadas as devidas proporções e particularidades, as práticas religiosas não oficiais próximas da fé católica, como a de milagreiros, comum na região-tema do Museu do Seridó, se aproxima do que foi explicado aqui acerca das religiões de matriz africana.
O Museu está empenhado em fazer a pesquisa, mas não pretende simplesmente reproduzir a crença desses fiéis como verdade. Um Museu de universidade pública não pode, pelo compromisso com a ciência e a laicidade do Estado, afirmar peremptoriamente que um milagre existe, por exemplo, mesmo que a comunidade que expressa essa fé sendo ela ou não oprimida e silenciada.
O objeto da ação museal e política, nesses casos, deve ser o olhar sobre o silenciamento da comunidade perseguida, como ele se forma, como o preconceito e o estigma são estruturados em nossa sociedade. É preciso expor, em todos os sentidos, as violências e perseguições pelas quais comunidades passam pela fé que expressam, o que difere de reproduzir a crença em si. E, em 2022, será esta a trilha do Museu.
Autor: Tiago Tavares e Silva