Entre o ritual e o descarte: a queda da experiência musical


Por Fredi Jon

Houve um tempo em que os aparelhos de som eram tratados como verdadeiros templos da música. No Brasil, marcas como Gradiente, Polyvox, Sony, Philips e CCE não apenas vendiam produtos, mas disputavam o prestígio de entregar o melhor som, com respeito ao ouvinte e à própria arte. Eram equipamentos feitos em aço escovado, pesados, sólidos, acompanhados de caixas de madeira que vibravam como instrumentos musicais.

Mas a corrida pela qualidade foi lentamente substituída pela corrida do lucro. O aço virou plástico, a madeira virou compensado, o acabamento virou aparência. O marketing inventou o PMPO, medida enganosa que vendia potência imaginária, enquanto a fidelidade sonora era abandonada. O consumidor passou a comprar números, não som.


Esse empobrecimento técnico coincidiu com uma decadência cultural ainda mais grave. O vinil, e depois o CD, traziam encartes, fotos, letras, ficha técnica dos músicos, a história por trás de cada faixa. Era mais que música: era memória, documento e afeto. Havia sebos para trocar discos, fazer amizades, discutir bandas. Em São Paulo, até cinemas se transformavam em palcos para shows de rock. O som era encontro.

Com a música digital, essa cadeia afetiva foi quebrada. O arquivo substituiu o álbum, a thumbnail substituiu a capa, a playlist descartável substituiu o ritual. As gravadoras, que antes tinham compromisso em lapidar artistas e dar-lhes carreira, renderam-se à lógica do mercado. Hoje, as plataformas de streaming tratam música como produto de prateleira, empurrado por algoritmos que pouco se importam com arte, mas muito com engajamento.


E não foi apenas o formato que mudou: a própria música perdeu densidade. Se antes se celebravam arranjos complexos, letras intensas e experimentações que exigiam do público, hoje se produz em série, buscando virais rápidos e descartáveis. A escuta deixou de ser coletiva, deixou de ser experiência. O som que antes ocupava a sala inteira agora se reduz ao isolamento de um fone barato ou a caixas portáteis que priorizam volume e não qualidade.

Ainda assim, a nostalgia resiste. Muitos jovens, curiosos ou orientados pela memória de pais e avós,  buscam aparelhos antigos. Descobrem que havia uma diferença concreta no peso, na construção e, sobretudo, no respeito pelo ouvido humano. A música, quando passa por madeira, agulha e amplificador, respira de outro modo.

O Brasil, que já viveu a era da excelência sonora, hoje assiste à banalização da experiência musical. O som virou produto descartável, e a música, ruído de fundo para a pressa. O que se perdeu não foi apenas a qualidade do aparelho, mas a qualidade da escuta, da convivência, do próprio afeto.

E talvez essa seja a maior crítica: ao abandonar a solidez dos aparelhos de som e a densidade das músicas, também abandonamos uma parte da nossa capacidade de ouvir os outros, o mundo e a nós mesmos.

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