Durante muito tempo houve a proliferação da ideia, num meio termo entre academicismo e senso comum, de que o carnaval era uma perda de tempo. A tendência mais moralista focava na pouca roupa, consumo de álcool e sexo casual. A parte mais “ilustrada” voltava sua mira para músicas que não estariam no padrão de Noel Rosa, e para a suposta política do “pão-e-circo”. Felizmente, hoje, se ainda existente, essa ideia não encontra tanto eco. De fato há facetas contraditórias no carnaval, mas elas são vistas por muitos interessados no tema como parte de algo complexo. A patrimonialização do carnaval colaborou para que tal noção ganhasse espaço: carnaval é mais que uma união de pessoas querendo se divertir.
O carnaval tem em seu seio vários patrimônios culturais reconhecidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN): Maracatu Nação, Frevo, Maracatu de Baque Solto, Matrizes do Samba e Samba de Roda do Recôncavo Baiano, entre outros. Portanto fica claro que o carnaval é algo que tem um valor de patrimônio imaterial, assim como esse patrimônio se manifesta de formas variadas a depender da região, comunidade, época etc.
Podemos, então, refletir sobre os bens culturais que ainda não foram reconhecidos pelo IPHAN, aqueles que não são transmitidos em rede nacional aberta nem em canais do YouTube com grande audiência. É o caso de um festejo dentro do Boi de Arrasto, como é conhecido o carnaval de Currais Novos, município potiguar da região Seridó, reestruturado desde 2013. O Boi de Trangola é uma manifestação da comunidade curraisnovense Trangola que lembra o Bumba Meu Boi, bem cultural secular de maior amplitude, mas geralmente associado às festas juninas.
Trangola é um lugar com forte presença da agricultura, mas que tem sofrido com intenso processo de desertificação. Não esquecendo que o lugar, em uma perspectiva mais ampla, faz parte de um continente com longo histórico de exploração, tão bem descrito pelo uruguaio Eduardo Galeano no clássico As veias abertas da América Latina, e a intensidade dos problemas sociais aumenta justamente porque há áreas mais exploradas dentro dele.
As expressões culturais e os modos de fazer surgem independente da condição social, mas a forma como existem tem uma ligação indelével com ela. As populações expressam uma cultura, mas esta cultura não paira no vazio, não está isolada da condição material das pessoas. Por isso, a comunidade Trangola comemora o carnaval, certamente de modo bem diferente dos que caem na folia com baúta e morretta. Ao invés disso, os foliões seguem a representação do Boi de Trangola, alguém fantasiado com um boi colorido e grandes e bonecos igualmente coloridos, representando pessoas pretas com artefatos da cultura afro-brasileira.
O boi escapa do curral e ganha sua liberdade, tal qual a população que o segue. O caráter de resistência fica evidente na representação, mas também na forma como a comunidade fez ressurgir o boi de arrasto, que não contava, até então, com apoio estatal ou do comércio local. Ele e ela, o boi e a comunidade, tomaram posse de seu destino, começaram a se organizar e a partir disso as coisas aconteceram. Como homens e mulheres têm a prática sociocultural de musealizar coisas, a comunidade também já tem sua instituição para pesquisar, preservar e comunicar sua memória coletiva (Museu Histórico Vicente Firmino) e constrói, ela mesma, suas narrativas de vida, resistência e festa.
Autoria do texto: Tiago Medeiros e Silva
Autoria da pintura: Adriano Santori
Autoria do design gráfico: José Lucas de Araújo Gomes