O Museu do Seridó organiza mais uma exposição, Devoções do Seridó, a fé em tempos de pandemia. Com uma equipe ampla, incluindo além da curadoria, pessoas para pensar ações educativas outras para as questões de arte e design, além de toda a parte técnica envolvida na construção de um site para a experiência virtual. No ano anterior, houve a primeira prática da equipe com exposição virtual e, durante a celebração mais importante da região, a Festa de Santana, estreamos nosso novo espaço. Esta edição, prevista para finais de julho de 2021, seguiremos, de modo não confessional, refletindo sobre o tema da devoção católica, porém, relacionando a fé e o isolamento social: que mudanças estão ocorrendo no exercício das devoções nesses tempos de isolamento? Como lugares de fé, referências materiais do sagrado, estão sendo ressignificados? E os territórios enquanto espaço público e parte dessa relação identitária, onde se situam numa fé exercida em casa? Que conexões podemos pensar sobre fé, identidade cultural e território, dentro da comunicação museal?
Pensamos que a relação pode começar a ser pensada com uma palavra, hierofania. Ela foi cunhada pelo romeno Mircea Eliade e significa manifestação reveladora do sagrado. Trata-se da presença de algo de uma outra ordem, de uma outra realidade diferente da nossa, como o sagrado no ato de habitação de totens entre religiões denominadas primitivas. Para o cristianismo, a maior hierofonia é a habitação de Deus em Jesus Cristo.
A hierofania e a exposição museal têm algo em comum. Nelas um objeto perde seu uso e valor inicial e adquire outros: um objeto de arte santeira para o museu deixa seu sentido primeiro de ornamento e passa a comunicar, junto com outros em um dado arranjo pensado pela curadoria, uma mensagem educativa, por exemplo, sobre a história da arte santeira da região ou suas devoções (que é, inclusive, nosso caso); para o devoto, aquele objeto também não é apenas ornamento, é manifestação do sagrado, é, pra retomamos o sentido primeiro de religião, meio de ligação. Religião, como muitos sabem, vem de religação – religare. Ligar e religar parecem palavras estranhas em um tempo de isolamento social à primeira vista. Mas etimologia não é pacífica e há outro sentido a ela atribuído: reler. Reler, no sentido de rever a situação, pode ser até mais apropriada para pensarmos os dias atuais e suas transformações.
A Festa de Santana e a devoção no Seridó e no mundo tem sido, por força das circunstâncias, relida. A manifestação do sagrado tem mudado para permanecer igual: casas se confundem com altares enquanto ruas, outrora lotadas de fiés e seus cânticos, testemunham o vazio e o silêncio. A cidade parece não mais pulsar na Festa de Santana, mas trata-se de uma pulsação de outra ordem, do deslocamento da vivência de fé do espaço público para o privado, estas duas dimensões da vida que tanto se diferenciam mas tanto se tocam.
Muito da arte santeira do Museu do Seridó provém de antigos objetos de adorno doméstico. Hoje peças do nosso acervo, terminam por dialogar, a partir de uma intenção curatorial, com o fenômeno contemporâneo da revalorização dos altares domésticos por causa do isolamento social. A fé em Santana começou antes da catedral homônima (embora por ela ampliada), construída na segunda metade do século XVIII, com as povoações locais e a influência da colonização portuguesa. Esta, vale destacar, não foi homogênea em todo território brasileiro.
A expressão da fé era essencialmente doméstica nos primeiros povoados da região, experiência hoje revivida de certa forma. A relação entre fé e identidade territorial e o patrimônio arquitetônico persiste porque esses elementos continuam presentes na devoção doméstica e virtual: o devoto não vai à Catedral de Sant’Ana, mas tem imagem da santa ou da edificação na parede ou no computador, assim como de Jesus e Maria. A hierofania se desloca, mas permanece. E se desloca para permanecer.
Autoria: Tiago Tavares e Silva; Vanessa Spinosa.
Imagem: Tiago Tavares e Silva.