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As irmandades negras e a museologia – Parte II
Para ser criada, uma irmandade negra colonial precisava da autorização da Igreja Católica e do Estado brasileiro, materializado em um documento chamado de “compromisso”, como pontuou outra grande estudiosa do tema, Hebe Mattos. Em outras palavras, as organizações diretamente comprometidas com a ordem social, política e econômica que escravizava pessoas negras não apenas tinham consciência das irmandades, não apenas não as combatiam, mas as organizavam dentro da sociedade colonial e as financiavam! Não era um elemento estranho às classes dominantes e suas instituições, era algo integrado a esta mesma sociabilidade.
Estar integrado, no entanto, não significa dizer harmônico. As irmandades representavam e representam uma visibilidade das populações negras, o que não era nem nunca será bem-vindo por grupos e instituições moldadas no racismo estrutural, expressão tão aprofundada por Sílvio Almeida. Por que, então, eram aceitas, organizadas e até financiadas por entidades racistas?
Lembremos aqui da Revolução Haitiana em 1791. Foi a maior rebelião de pessoas negras escravizadas que os contemporâneos ouviram falar. Aproximadamente dois séculos antes, aqui mesmo, se erguia o maior quilombo da América Latina, o de Palmares. A historiografia tradicional sempre minimizou a resistência negra à escravidão, mas ela ocorreu. Não há demônio que tente destruir o poder bravio da humanidade que passe incólume, como demonstram Zumbi, Sandino e Antonio Conselheiro. Assim também como uma Nação de lutadoras, como Vilma Spín, Dandara, Elza Monnerat, Marielle Franco, Felipa Maria Aranha, Lyudmila Pavlichenko, Tereza de Benguela, e tantas outras mulheres que lutaram e lutam para ecoar suas vozes na história desse país.
Há duas consequências quando os exploradores têm medo dos explorados: de um lado surgem concessões, do outro aumento da repressão. Elas não são concorrentes, mas complementares. Em tempos recentes vimos como muitos membros da burguesia, mesmo apreciadores de discurso aparentemente racional, técnico e até progressista, em face de forças as mais retrógradas e violentas possíveis, se alinham a elas na política de manutenção de privilégios. A docilidade aparente dos que estão pretensamente acima em uma sociedade dividida é parte da ferocidade da exploração. As circunstâncias concretas é que determinam qual tática é mais demandada para o momento, embora existam concomitantemente.
O antagonismo entre classes permanece em nossa sociedade, em outra estrutura social, mas, em grande medida, pelos descendentes dos grupos opostos de outrora. O escravizado de 1883, após 140 anos, é o entregador de comida por aplicativo, cansado de jornadas exaustantes e humilhações. Se antes seus tataravós se encontravam entre a casa grande e a senzala, hoje seus descendentes se encontram nos edifícios de luxo, um do lado de fora e outro de dentro.
O olhar de cada um sobre alguma exposição rica em camadas, como a que o Museu do Seridó pretende fazer, pode destacar um ou outro aspecto, até acrescentar algo não pensado pela curadoria. Trata-se de uma exposição aberta, que tem uma intencionalidade, como toda expressão humana, mas que procura sua completude com o público. Há vários olhares sobre as irmandades: dos habitantes que assistem aos cortejos, dos fiés católicos, dos Negros do Rosário, dos pesquisadores entre outros. Cada um ajuda a compor a colcha de retalhos que é a nossa exposição, pois ela só se completa com esses olhares. Uma exposição é como as celebrações da Irmandade do Rosário em tempos festivos, efetuam-se no encontro com e para o público. Assim que o Museu do Seridó tenta realizar anualmente sua exposição Devoções do Seridó.
Entender essas disposições sociais e suas funções de apaziguamento das contradições e os limites e potencialidades dos espaços conquistados é algo útil também nas lutas de emancipação de homens e mulheres de ontem e hoje. Fazer esse papel ético, político e científico não é desconsiderar os enfoques consolidados pelas pesquisas sobre tais fenômenos sociais, mas localizá-los numa totalidade contraditória que é o mundo concreto.
Como toda pesquisa e exposição (a exposição tem início em uma pesquisa inclusive) partem de uma delimitação, aqui não seria diferente. O recorte para pensarmos sobre as Irmandades será a figura da mulher. Assim, pesquisar, preservar e comunicar tais formas de “resistência consentida”, suas limitações, potencialidades e tensões, dentro de uma análise crítica, alicerçada no papel extensionista da universidade pública brasileira, a partir da análise da atuação das mulheres, são caminhos possíveis de leitura, os quais sigo aqui, da Irmandades Negras: substantivo feminino.
Autoria do texto:Tiago Tavares e Silva
Autoria da arte:Hyally Carvalho Dutra Pereira